ESPECTÁCULOS
O longo período de investigação do projeto VENTRILOQUIA será um período poético de gestação de uma outra forma de olhar para o património imaterial feminino, em que ao corpo principal do projeto se somam outras ações, como a criação de objetos artísticos a partir das obras de cinco autoras, cujo hibridismo de linguagem empresta à criação artística coeva um ímpeto singular irrecusável.
“Armada”, enquanto substantivo, feminino, entenda-se, é o conjunto dos navios e tropas de mar de uma nação. Enquanto adjetivo, feminino, entenda-se, é aquela que tem arma ou está munida de arma. Somos uma armada de pele sem rostos que convoca tempos e cheiros da amável Lisboa de outra década.
Cidade ainda pequena e marcada pelo salazarismo.
Invencível vitória é chegarmos aqui, a este século intempestivo, impessoal, despersonalizado. Somos onze mulheres que se desmultiplicam num espaço que trespassa paredes. Não há teatro, não há representação. Antes de tudo (e sobretudo): o desejo de dizer na boca e no corpo as palavras que sobram do quotidiano.
Tomamo-las à Invencível Armada, resgatando o nome do poema homónimo da autora Maria da Graça Varella Cid.
Fotografia: © Estelle Valente / SÃO LUIZ
A MOST DELICATE
MONSTER
(construção do poema comum)
É curioso que estas palavras que nos servem detítulo, tão imperialista e belicista, associado à nossa história enquanto nação, estejam inscritas naquela que é a história dos homens (com “h” pequeno, entenda-se) do nosso país. Aquilo que fazemos neste projeto — a nossa Invencível Armada — tem precisamente a ver com isso: potenciar uma outra perspetiva histórica que não a de relegar o papel feminino na construção coletiva para um lugar de sombra.
Fotografia: © Estelle Valente / SÃO LUIZ
Convocamos a multiplicidade de vozes, de corpos, de energias, de identidades que compõem este grupo de invencíveis. E somos invencíveis porque estamos armadas de cumplicidade - assim queremos expandir o nosso império. Um império onde cabem todas as cidades, todas as pequenas aldeias. Onde as fronteiras servem como propósito para o elogio da multiplicidade, para o espectro de luzes, em profunda intimidade. Um império que seja um corpo inextenso, comum e astronáutico, que come, dorme, e tem sentidos como nós. Um império que também sonha, anda e fala.
Fotografia: © Estelle Valente / SÃO LUIZ
O espectáculo INVENCÍVEL ARMADA foi apresentado no Teatro SÃO LUIZ (Lisboa) de 9 a 12 de fevereiro de 2023.
Direção artística: Cátia Terrinca
Dramaturgia: Ricardo Boléo
Cenografia: Bruno Caracol
Luz: João P. Nunes
Voz: Bruno Huca
Movimento: Sara Afonso
Design: David Costa
Interpretação: Cátia Terrinca, Cheila Lima, Elizabeth Pinard, Inês Sousa, Joana Martins, Júlia Zinga, Maria João, Mariana Bragada, Mariana Correia, Patrícia Andrade, Sara Brandão, Teresa Machado
Figurinos e Adereços: Raquel Pedro
Produção executiva: UMCOLETIVO
Agradecimentos: José Oliveira
Coprodução: UMCOLETIVO, CAEP – Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre, RTP e São Luiz Teatro Municipal
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“Penélope”, a partir do Volume II da obra homónima e inédita da escritora Alice Sampaio, é um objeto artístico disruptivo que propõe dois encontros entre artistas e público. Aqui, Ulisses fala-nos como a chuva. Não é ele, mas antes ela — Penélope — a personagem principal. Afinal, ao longo de tantos dias, meses e anos tecendo e desfazendo uma tapeçaria na espera incançável, que narrativa foi ela criando que não a narrativa da esperança?
o tempo como intérprete
da esperança
A pergunta "de que se alimenta a espera?" é motivo suficiente para desmembrar o nosso conceito tradicional de "data" e "evento" num plano cuja extensão coincida com a vastidão do tempo. Afinal, a agricultura é por excelência um exercício da contemplação e da espectativa — e do mesmo modo, toda a esperança é um exercício social de germinação, de florescimento, e de transformação.
Fotografia: © UMCOLETIVO
Penélope é um poema visual cujas raízes apelam a conhecimentos interdisciplinares da agricultura e da educação, possibilitando a criação de relação de afetividade entre os espectadores e a terra. Este processo não é e não pode ser isolado: é um continuum que se mostra tão basilar em toda a prática agrícola como tão urgente no nosso vertiginoso (e insustentável) mundo contemporâneo.
Assim, em cada um dos lugares que abraçam este projeto haverá dois momentos-chave — o da plantação das sementes e o do florescimento — separados por longas semanas de gestação. Entre um e outro resta o tempo — e o empenho, e a espera, e os sonhos — das comunidades locais que aceitam fazer sua esta jornada botânica e artística.
primeiro momento:
SEMENTEIRA
Sementeira instalada nos jardins da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda). Aqui, os utentes da CERCIG contribuem na semeação. A sementeira ficará a seu cargo e carinho até ao momento da germinação. Fotografia: © UMCOLETIVO
Na familiaridade inevitável que se cria entre espetadores e sementeira, Penélope pretende colocar questões transversais à contemporaneidade, relacionadas com as novas formas de agricultura sustentável, cujas técnicas hidropónicas permitem intervir nos solos com mais carências ao nível da água.
a espera é também
um lugar
Entre o momento de semeação e o de germinação, há uma eternidade: uma eternidade de dias, horas, segundos, uma eternidade de pensamentos, uma eternidade de processos microscópicos de que não nos apercebemos — afinal, a Natureza tem um trabalho sábio e silencioso. A espera é um risco, mas é também um trunfo da esperança. Entre um e outro, propomos um cuidado contínuo que não é só feito de rega, mas também de observação, de leitura, de partilha.
A sementeira da Guarda segue o seu natural processo de desenvolvimento. Fotografia: © UMCOLETIVO
segundo momento:
a GERMINAÇÃO
Depois de plantar há que colher. Colher, ou receber? Suplantar, ou admirar? Este segundo momento não é mais do que um pequeno sucesso (ou risco) agrícola: é um convite à contemplação do grandioso fenómeno da transformação, coisa que só aparentemente se remete ao processo de desenvolvimento do reino vegetal. Desta vez, todos os espetadores estão convidados a participar num ritual poético especialmente coreografado por Miguel Moreira.
uma criação coletiva com: Cátia Terrinca
apoio à criação: Miguel Moreira
dramaturgia: Ricardo Boléo
cenografia: Bruno Caracol
desenho de luz e som: João P. Nunes
figurino: Raquel Pedro
intervenção paisagística com apoio da Herdade do Freixo do Meio
design: David Costa
acompanhamento: Caroline Bergeron
produção: UMCOLETIVO
coprodução: Teatro Nacional D. Maria II em parceria com Fundação Calouste Gulbenkian, CAE Portalegre e com o apoio da Direção Geral das Artes e das Indústrias Criativas de Cabo Verde
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Judith Teixeira, há 100 anos, escreveu Decadência, um conjunto de poemas de amor lavrado no silêncio abrasado da carne. Luísa Demétrio Raposo diz agora, com a carne e o sangue, que “toda a escrita é sexo”.
Que calor é este que incendeia as mulheres e as faz renascer transfiguradas?
Decadência é um espetáculo sobre fogo que nos aproxima de uma mulher que arde nas palavras — “há fogo no fogo onde ela levita / ela levita dentro da pele”. Poderemos responder à violência histórica do gesto de quem queima uma mulher por ter amado? Afinal, quem é que queima quem?